domingo, 2 de novembro de 2014

O papel do imaginário infantil em Onde Vivem os Monstros



Dentro de todos nós está
Tudo o que você já viu
Tudo o que você já fez
Todos que você já amou
Há um dentro de todos nós
Onde vivem os monstros

Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, é considerado uma obra prima da literatura infantil. Publicado em 1963, promoveu rupturas e inovações tanto no uso das linguagens verbal e visual, quanto na escolha temática, ao abordar não apenas o imaginário infantil, mas, principalmente, as partes obscuras dele, sua relação com os dramas e conflitos presentes na infância. Texto verbal e ilustrações articulam-se de maneira magnífica, compondo uma narrativa visual simples, direta e envolvente. Em 2009, o livro foi adaptado para o cinema pelo diretor Spike Jonze, sendo, também, bastante aclamado pela crítica.

A história está centrada nos conflitos entre Max e sua mãe gerados pelo mau comportamento do garoto e a forma como ele lida com a questão. Observando a ilustração de capa e o título, podemos antecipar a ideia de uma viagem a um lugar onde um monstro está serenamente sentado sob as árvores à beira d’água, onde um barco está ancorado. Entretanto, o protagonista da viagem ainda não nos foi apresentado.



 Max aparece pela primeira vez na folha de rosto, onde notamos uma inversão de papéis: é o menino quem persegue os monstros, mostrando se mais terrível do que eles. A julgar por seus gestos e expressões, no entanto, trata-se de uma simulação, uma brincadeira de faz de conta.


A história inicia mostrando-nos um Max inquieto, fazendo uma bagunça atrás da outra dentro de sua própria casa, vestindo uma fantasia de lobo. Por seu comportamento Max é repreendido pela mãe que o manda para a cama sem jantar. O texto visual mostra-nos um quarto limpo, organizado, cujo único adorno é um vaso de planta sobre uma mesa forrada, destoando da representação que vem sendo construída acerca do menino. Max continua irritado e olha de modo petulante para a porta fechada. O garoto circula pelo quarto de olhos fechados, e, gradualmente, uma floresta começa a surgir no ambiente. A impossibilidade de tal acontecimento causa estranhamento e um leitor experiente possivelmente irá interpretá-lo como fantasia de Max. Segundo Maria Nikolajeva e Carole Scott, autoras do livro Livro ilustrado: palavras e imagens, tanto o texto verbal quanto o texto visual não explicitam claramente se Max está fantasiando ou não, cabendo ao leitor decidir por uma ou outra interpretação. A partir dos conceitos de modalidade e pacto ficcional ou o leitor aceita que no mundo de Max o surgimento de uma floresta dentro do quarto é possível e, portanto, está realmente acontecendo, ou compreende que o fato não é real: o que vemos retratado, tanto pelas palavras quanto pelas ilustrações, é o imaginário de Max.  Neste momento, realidade e fantasia se mesclam.









As expressões de Max parecem denotar um ato de rebeldia: apesar de ter sido mandado para o quarto, que nada tem de interessante para uma criança, e, ainda por cima, sem jantar, Max encontra outra forma de continuar suas travessuras. O garoto adentra a floresta, encontra um oceano com um barquinho só para ele e inicia sua viagem ao lugar onde as coisas selvagens estão.

Uma das principais diferenças entre o livro e o filme está na passagem da realidade para a fantasia. Enquanto no livro Max nunca deixa seu quarto, no filme, após brigar com a mãe, o garoto foge de casa e se esconde em uma mata próxima e, andando pela mata, acaba por encontrar o barco. A fuga de Max e a presença de uma mata real tornam a modalidade ainda mais ambígua. Sendak, que supervisionou a produção do filme, não aprovou “o modo literal com que o diretor lidou com o espaço” (CRUZ, 2011). Segundo Cruz (2011, p. 78),

Sendak não alude a um lugar puramente espacial, mas a um lugar que está na subjetividade da personagem Max – seus monstros são internos: conflitos próprios de uma criança. [...] Esta questão é cara à Sendak, e aparece na resposta dada pelo autor ao diretor Spike Jonze, que em sua adaptação fílmica deu à dimensão espacial uma literalidade eminentemente física.

No livro, Max é recepcionado pelos monstros ainda na praia e, apesar de eles rugirem seus terríveis rugidos, arreganharem seus terríveis dentes, revirarem seus terríveis olhos e mostrarem suas terríveis garras, o garoto não se intimida, ao contrário, domina-os e é coroado rei de todos os monstros, dando início à bagunça geral. As palavras desaparecem enquanto as imagens tomam por completo a página dupla.
 

Além da diferença acima aludida, o filme amplia o que é narrado no livro, mostrando a vida de Max em diferentes aspectos: a presença de uma irmã mais velha, a ausência do pai, o relacionamento com a mãe (que não aparece visualmente no livro) e, até mesmo, momentos da vida escolar de Max. Esses momentos frequentemente antecipam elementos que Max irá utilizar para elaborar seu mundo interior.

Na versão cinematográfica, Max é uma criança solitária, impressionável e imaginativa. Embora o relacionamento com a mãe seja mais próximo, a demanda por atenção de Max é maior que sua mãe e irmã podem lhe dar. A dificuldade de Max em compreender esse “abandono” parece tornar a realidade ameaçadora, agravada ainda por suas próprias emoções conflituosas. A viagem de Max para a terra dos monstros configura-se então como uma busca para dar sentido à essa realidade que vivencia, e difere, de certa maneira, daquela do livro, em que o garoto procura dar vazão às suas emoções. O encontro de Max com os monstros mistura medo e ousadia e o garoto os conquista não com a confiança inabalável de olhar nos olhos deles sem piscar, mas contando-lhes uma de suas histórias, onde Max reinventa a si mesmo.

Segundo Calvino (1990), a imaginação pode ser compreendida a partir de duas correntes: “como instrumento de saber ou como identificação com a alma do mundo”. Assim, a imaginação serviria tanto como elemento necessário ao processo de construção de um saber científico quanto à apreensão intuitiva, subjetiva, de uma realidade cósmica, relacionada ao conhecimento teosófico. Entretanto, o autor propõe outra possibilidade: a imaginação como “um processo de associações de imagens”, imagens estas provenientes de toda a experiência do indivíduo, fragmentos de memória que a imaginação experimenta e combina em infinitas formas do possível e do impossível.

A reflexão que se coloca é: como Max utiliza sua imaginação? Que sentidos, que objetivos, atribui a ela? Ou que sentido nós, leitores/espectadores, lhe atribuímos? Ao chegar a terra dos monstros, Max apresenta-se como conquistador e rei de vikings, alguém a quem os monstros deveriam temer e respeitar. Mas os monstros querem saber se Max fará tudo ficar bem, se irá acabar com a solidão. O menino garante-lhes que possui um escudo anti-tristeza e os monstros, então, conferem-lhe o poder rei.

Max outorga-lhe, em sua imaginação, o poder de consertar tudo, de recriar o mundo conforme sua vontade. Isso se torna mais evidente conforme o enredo se desenvolve. Carol, o monstro de quem Max mais se aproxima, mostra-lhe uma maquete de gravetos: o mundo de seus sonhos, onde apenas acontece aquilo que desejam.





O projeto era coletivo, mas, gradualmente, todos foram se afastando. Max representa a chegada de algo novo pelo qual todos ansiavam, renovando as esperanças. Para Carol isso significa o retorno ao estado anterior, onde todos estavam juntos.  Carol simboliza fortemente o aspecto da psique de Max que deseja que as coisas permaneçam como são, sua dificuldade de lidar com mudanças, rupturas e frustrações. Simboliza tanto a criatividade quanto a raiva e agressividade de Max, em uma contraposição interessante: o poder de criar e o poder de destruir. Ambos os aspectos são bem enfatizados no filme.

Max propõe a construção de um forte e todos se animam com a ideia. Logo surgem elementos de discordância – os desejos de um não correspondem aos dos outros. Nem tudo é perfeito. Entretanto, Max agora é o responsável por eles, é ele quem deve buscar soluções para as dificuldades e frustrações dos outros. Elemento contrário a Carol, KW parece simbolizar o amadurecimento, a necessidade de seguir em frente, buscando o novo. Nesse sentido, aproxima-se mais da irmã adolescente de Max, que começa a deixar de brincar com o irmão mais novo para sair com os amigos e namorado.  KW leva o garoto para encontrar seus amigos mais sábios, as corujas Bob e Terry. Max pergunta a eles como pode fazer para que todos fiquem felizes, mas não é capaz de compreender a resposta que recebe. O conflito permanece sem solução.

Para acabar com a tristeza que se instalou pelo grupo Max propõe que façam uma guerra entre eles. Segundo ele, é o “melhor jeito de nos divertirmos juntos”. Max usa a violência para se sentir melhor, para liberar suas emoções e lidar com as frustrações e tristeza. Reproduz na brincadeira de faz de conta com os monstros a maneira como costumar agir no mundo real. No entanto, a brincadeira se torna séria quando ultrapassa os limites. A felicidade não dura para sempre. Novamente os conflitos entre eles ameaçam a coesão do grupo.

É Alexander, que representa a insegurança, o aspecto frágil e imaturo de Max, quem primeiro percebe sua incapacidade de resolver de maneira permanente as divergências entre eles. A possibilidade de ser desmascarado pelos monstros parece amedrontar o garoto. Max começa a pressentir a dificuldade de cumprir sua promessa e sente o peso da responsabilidade de manter junto aquilo que está se despedaçando. A relação entre o momento e a situação da mãe do menino é evidente e Max será confrontado com essa posição por diversas vezes chegando mesmo a ocupa-la momentaneamente.

Carol se dá conta da mentira de Max: ele não é um rei de verdade e se enfurece. Expressa, dessa forma, o que talvez seja o cerne da questão: o desapontamento de Max para com seus pais:

– Você deveria cuidar de nós. Você prometeu – diz Carol.

Max, assustado com o rompante do monstro, reproduz a fala de sua mãe: “Você está descontrolado”. O garoto foge e KW o esconde dentro de si, engolindo-o. Carol busca por Max e encontra KW. A conversa que se segue é emblemática de toda a trama:

– Eu não sou tão mau quanto ele diz, sou? – Carol pergunta para KW.
 – Vá embora.
 – Eu só queria que todos ficássemos juntos – diz ele.

Carol sai e KW retira Max de dentro de si. Ela então pergunta para Max:

– Dá pra acreditar nisso?
– Ele não quer ser assim, KW. Só está assustado – responde Max.
– Ele só está tornando as coisas mais difíceis.
– Ele ama você. Você é parte da família dele.
– É difícil ser família.
– Eu queria que vocês tivessem uma mãe.
KW sorri e Max conclui: – Vou pra casa.

Novamente, livro e filme divergem ligeiramente nos sentidos dados à experiência de Max. No livro Max se mostra entediado após toda a bagunça que aprontaram e o mundo em que se encontra não condiz mais com seu estado de ânimo e com seus desejos. Max decide voltar pra casa apesar dos protestos dos monstros, que querem que ele fique. Entretanto, Max parece mais indiferente aos monstros que o contrário. Seu desejo é estar com alguém que goste dele de verdade e sente cheiro de comida vindo de todos lados. Ele então entra no barquinho que é só seu e dá adeus aos monstros. Na versão cinematográfica, Max encontra-se com os monstros na praia e se despede deles de maneira comovente. Os vínculos estabelecidos com os monstros no filme são mais profundos e não permitem a indiferença anterior. Max se despede, sua confiança e alegria restauradas, pois agora compreende o que representa ser uma família.

A fantasia de Max possibilita-lhe, dessa forma, vivenciar diferentes papéis, recriando a realidade perturbadora com a qual, inicialmente, não consegue lidar, mas agora, é capaz de compreender. No mundo imaginário, Max reconcilia-se com sua mãe e consigo mesmo e pode agora voltar para casa. Sua viagem representa um processo iniciático, o conhecimento de si mesmo que lhe permite o amadurecimento. “O mundo não é um lugar fácil e muito seguro, mas só Sendak tinha coragem de dizer isso às crianças” (CARAMICO, 2012). Essa representação de uma infância sem mitificações é o que torna a obra de Sendak tão espetacular e a que o filme de Jonze só tem a contribuir.

Referências:

CALVINO, Ítalo. Visibilidade. In: Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CARAMICO, Thaís. Onde vivem os heróis: o mundo nada fácil de Sendak. Revista Emília, 2012. Disponível em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=198
CRUZ, Joceli Cristiane da. Onde vivem os monstros: o espaço narrativo como construção de uma autonomia existencial nos textos dedicados à infância. 2011. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Centro Universitário Campos de Andrade. Paraná. Curitiba. 2011.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosak Naify, 2011.
SENDAK, Maurice. Onde vivem os monstros. São Paulo: Cosak Naify, 2009.

Ver também:
http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=422

Trailer Onde vivem os monstros:

 
 

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