Dentro de todos nós está
Tudo o que você já viu
Tudo o que você já fez
Todos que você já amou
Há um dentro de todos nós
Onde vivem os monstros
Onde vivem os monstros,
de Maurice Sendak, é considerado uma obra prima da literatura infantil. Publicado
em 1963, promoveu rupturas e inovações tanto no uso das linguagens verbal e
visual, quanto na escolha temática, ao abordar não apenas o imaginário
infantil, mas, principalmente, as partes obscuras dele, sua relação com os
dramas e conflitos presentes na infância. Texto verbal e ilustrações
articulam-se de maneira magnífica, compondo uma narrativa visual simples,
direta e envolvente. Em 2009, o livro foi adaptado para o cinema pelo diretor
Spike Jonze, sendo, também, bastante aclamado pela crítica.
A história está
centrada nos conflitos entre Max e sua mãe gerados pelo mau comportamento do
garoto e a forma como ele lida com a questão. Observando a ilustração de capa e
o título, podemos antecipar a ideia de uma viagem a um lugar onde um monstro
está serenamente sentado sob as árvores à beira d’água, onde um barco está
ancorado. Entretanto, o protagonista da viagem ainda não nos foi apresentado.
Max aparece pela
primeira vez na folha de rosto, onde notamos uma inversão de papéis: é o menino
quem persegue os monstros, mostrando se mais terrível do que eles. A julgar por
seus gestos e expressões, no entanto, trata-se de uma simulação, uma
brincadeira de faz de conta.
A história inicia
mostrando-nos um Max inquieto, fazendo uma bagunça atrás da outra dentro de sua
própria casa, vestindo uma fantasia de lobo. Por seu comportamento Max é
repreendido pela mãe que o manda para a cama sem jantar. O texto visual
mostra-nos um quarto limpo, organizado, cujo único adorno é um vaso de planta
sobre uma mesa forrada, destoando da representação que vem sendo construída
acerca do menino. Max continua irritado e olha de modo petulante para a porta
fechada. O garoto circula pelo quarto de olhos fechados, e, gradualmente, uma
floresta começa a surgir no ambiente. A impossibilidade de tal acontecimento
causa estranhamento e um leitor experiente possivelmente irá interpretá-lo como
fantasia de Max. Segundo Maria Nikolajeva e Carole Scott, autoras do livro Livro ilustrado: palavras e imagens,
tanto o texto verbal quanto o texto visual não explicitam claramente se Max
está fantasiando ou não, cabendo ao leitor decidir por uma ou outra
interpretação. A partir dos conceitos de modalidade e pacto ficcional ou o
leitor aceita que no mundo de Max o surgimento de uma floresta dentro do quarto
é possível e, portanto, está realmente acontecendo, ou compreende que o fato
não é real: o que vemos retratado, tanto pelas palavras quanto pelas
ilustrações, é o imaginário de Max. Neste
momento, realidade e fantasia se mesclam.
As
expressões de Max parecem denotar um ato de rebeldia: apesar de ter sido
mandado para o quarto, que nada tem de interessante para uma criança, e, ainda
por cima, sem jantar, Max encontra outra forma de continuar suas travessuras. O
garoto adentra a floresta, encontra um oceano com um barquinho só para ele e
inicia sua viagem ao lugar onde as coisas selvagens estão.
Uma
das principais diferenças entre o livro e o filme está na passagem da realidade
para a fantasia. Enquanto no livro Max nunca deixa seu quarto, no filme, após
brigar com a mãe, o garoto foge de casa e se esconde em uma mata próxima e,
andando pela mata, acaba por encontrar o barco. A fuga de Max e a presença de
uma mata real tornam a modalidade ainda mais ambígua. Sendak, que supervisionou
a produção do filme, não aprovou “o modo literal com que o diretor lidou com o
espaço” (CRUZ, 2011). Segundo Cruz (2011, p. 78),
Sendak não alude a um lugar puramente espacial, mas
a um lugar que está na subjetividade da personagem Max – seus monstros são
internos: conflitos próprios de uma criança. [...] Esta questão é cara à
Sendak, e aparece na resposta dada pelo autor ao diretor Spike Jonze, que em
sua adaptação fílmica deu à dimensão espacial uma literalidade eminentemente
física.
No livro, Max é
recepcionado pelos monstros ainda na praia e, apesar de eles rugirem seus
terríveis rugidos, arreganharem seus terríveis dentes, revirarem seus terríveis
olhos e mostrarem suas terríveis garras, o garoto não se intimida, ao
contrário, domina-os e é coroado rei de todos os monstros, dando início à
bagunça geral. As palavras desaparecem enquanto as imagens tomam por completo a
página dupla.
Além da diferença acima
aludida, o filme amplia o que é narrado no livro, mostrando a vida de Max em
diferentes aspectos: a presença de uma irmã mais velha, a ausência do pai, o
relacionamento com a mãe (que não aparece visualmente no livro) e, até mesmo,
momentos da vida escolar de Max. Esses momentos frequentemente antecipam
elementos que Max irá utilizar para elaborar seu mundo interior.
Na versão
cinematográfica, Max é uma criança solitária, impressionável e imaginativa. Embora
o relacionamento com a mãe seja mais próximo, a demanda por atenção de Max é
maior que sua mãe e irmã podem lhe dar. A dificuldade de Max em compreender
esse “abandono” parece tornar a realidade ameaçadora, agravada ainda por suas
próprias emoções conflituosas. A viagem de Max para a terra dos monstros
configura-se então como uma busca para dar sentido à essa realidade que
vivencia, e difere, de certa maneira, daquela do livro, em que o garoto procura
dar vazão às suas emoções. O encontro de Max com os monstros mistura medo e
ousadia e o garoto os conquista não com a confiança inabalável de olhar nos
olhos deles sem piscar, mas contando-lhes uma de suas histórias, onde Max
reinventa a si mesmo.
Segundo Calvino (1990),
a imaginação pode ser compreendida a partir de duas correntes: “como
instrumento de saber ou como identificação com a alma do mundo”. Assim, a
imaginação serviria tanto como elemento necessário ao processo de construção de
um saber científico quanto à apreensão intuitiva, subjetiva, de uma realidade
cósmica, relacionada ao conhecimento teosófico. Entretanto, o autor propõe
outra possibilidade: a imaginação como “um processo de associações de imagens”,
imagens estas provenientes de toda a experiência do indivíduo, fragmentos de
memória que a imaginação experimenta e combina em infinitas formas do possível
e do impossível.
A reflexão que se
coloca é: como Max utiliza sua imaginação? Que sentidos, que objetivos, atribui
a ela? Ou que sentido nós, leitores/espectadores, lhe atribuímos? Ao chegar a
terra dos monstros, Max apresenta-se como conquistador e rei de vikings, alguém
a quem os monstros deveriam temer e respeitar. Mas os monstros querem saber se
Max fará tudo ficar bem, se irá acabar com a solidão. O menino garante-lhes que
possui um escudo anti-tristeza e os monstros, então, conferem-lhe o poder rei.
Max outorga-lhe, em sua
imaginação, o poder de consertar tudo, de recriar o mundo conforme sua vontade.
Isso se torna mais evidente conforme o enredo se desenvolve. Carol, o monstro
de quem Max mais se aproxima, mostra-lhe uma maquete de gravetos: o mundo de
seus sonhos, onde apenas acontece aquilo que desejam.
O projeto era coletivo,
mas, gradualmente, todos foram se afastando. Max representa a chegada de algo
novo pelo qual todos ansiavam, renovando as esperanças. Para Carol isso
significa o retorno ao estado anterior, onde todos estavam juntos. Carol simboliza fortemente o aspecto da
psique de Max que deseja que as coisas permaneçam como são, sua dificuldade de
lidar com mudanças, rupturas e frustrações. Simboliza tanto a criatividade
quanto a raiva e agressividade de Max, em uma contraposição interessante: o
poder de criar e o poder de destruir. Ambos os aspectos são bem enfatizados no
filme.
Max propõe a construção
de um forte e todos se animam com a ideia. Logo surgem elementos de
discordância – os desejos de um não correspondem aos dos outros. Nem tudo é
perfeito. Entretanto, Max agora é o responsável por eles, é ele quem deve
buscar soluções para as dificuldades e frustrações dos outros. Elemento
contrário a Carol, KW parece simbolizar o amadurecimento, a necessidade de
seguir em frente, buscando o novo. Nesse sentido, aproxima-se mais da irmã
adolescente de Max, que começa a deixar de brincar com o irmão mais novo para
sair com os amigos e namorado. KW leva o
garoto para encontrar seus amigos mais sábios, as corujas Bob e Terry. Max
pergunta a eles como pode fazer para que todos fiquem felizes, mas não é capaz
de compreender a resposta que recebe. O conflito permanece sem solução.
Para acabar com a
tristeza que se instalou pelo grupo Max propõe que façam uma guerra entre eles.
Segundo ele, é o “melhor jeito de nos divertirmos juntos”. Max usa a violência
para se sentir melhor, para liberar suas emoções e lidar com as frustrações e
tristeza. Reproduz na brincadeira de faz de conta com os monstros a maneira
como costumar agir no mundo real. No entanto, a brincadeira se torna séria
quando ultrapassa os limites. A felicidade não dura para sempre. Novamente os
conflitos entre eles ameaçam a coesão do grupo.
É Alexander, que
representa a insegurança, o aspecto frágil e imaturo de Max, quem primeiro
percebe sua incapacidade de resolver de maneira permanente as divergências
entre eles. A possibilidade de ser desmascarado pelos monstros parece
amedrontar o garoto. Max começa a pressentir a dificuldade de cumprir sua
promessa e sente o peso da responsabilidade de manter junto aquilo que está se
despedaçando. A relação entre o momento e a situação da mãe do menino é evidente
e Max será confrontado com essa posição por diversas vezes chegando mesmo a
ocupa-la momentaneamente.
Carol se dá conta da
mentira de Max: ele não é um rei de verdade e se enfurece. Expressa, dessa
forma, o que talvez seja o cerne da questão: o desapontamento de Max para com
seus pais:
– Você deveria
cuidar de nós. Você prometeu – diz Carol.
Max, assustado com o
rompante do monstro, reproduz a fala de sua mãe: “Você está descontrolado”. O
garoto foge e KW o esconde dentro de si, engolindo-o. Carol busca por Max e
encontra KW. A conversa que se segue é emblemática de toda a trama:
– Eu não sou tão mau quanto ele diz, sou? – Carol
pergunta para KW.
– Vá embora.
– Eu só queria que
todos ficássemos juntos – diz ele.
Carol sai e KW retira
Max de dentro de si. Ela então pergunta para Max:
– Dá pra acreditar
nisso?
– Ele não quer ser
assim, KW. Só está assustado – responde Max.
–
Ele só está tornando as coisas mais difíceis.
– Ele ama você.
Você é parte da família dele.
– É difícil ser
família.
– Eu queria que
vocês tivessem uma mãe.
KW sorri e Max
conclui: – Vou pra casa.
Novamente, livro e
filme divergem ligeiramente nos sentidos dados à experiência de Max. No livro Max
se mostra entediado após toda a bagunça que aprontaram e o mundo em que se
encontra não condiz mais com seu estado de ânimo e com seus desejos. Max decide
voltar pra casa apesar dos protestos dos monstros, que querem que ele fique. Entretanto,
Max parece mais indiferente aos monstros que o contrário. Seu desejo é estar
com alguém que goste dele de verdade e sente cheiro de comida vindo de todos
lados. Ele então entra no barquinho que é só seu e dá adeus aos monstros. Na
versão cinematográfica, Max encontra-se com os monstros na praia e se despede
deles de maneira comovente. Os vínculos estabelecidos com os monstros no filme
são mais profundos e não permitem a indiferença anterior. Max se despede, sua
confiança e alegria restauradas, pois agora compreende o que representa ser uma
família.
A fantasia de Max
possibilita-lhe, dessa forma, vivenciar diferentes papéis, recriando a
realidade perturbadora com a qual, inicialmente, não consegue lidar, mas agora,
é capaz de compreender. No mundo imaginário, Max reconcilia-se com sua mãe e
consigo mesmo e pode agora voltar para casa. Sua viagem representa um processo
iniciático, o conhecimento de si mesmo que lhe permite o amadurecimento. “O mundo
não é um lugar fácil e muito seguro, mas só Sendak tinha coragem de dizer isso
às crianças” (CARAMICO, 2012). Essa representação de uma infância sem
mitificações é o que torna a obra de Sendak tão espetacular e a que o filme de
Jonze só tem a contribuir.
Referências:
CALVINO,
Ítalo. Visibilidade. In: Seis propostas
para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CARAMICO,
Thaís. Onde vivem os heróis: o mundo nada fácil de Sendak. Revista Emília, 2012. Disponível em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=198
CRUZ,
Joceli Cristiane da. Onde vivem os
monstros: o espaço narrativo como construção de uma autonomia existencial
nos textos dedicados à infância. 2011. Dissertação (Mestrado em Teoria
Literária). Centro Universitário Campos de Andrade. Paraná. Curitiba. 2011.
NIKOLAJEVA,
Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado:
palavras e imagens. São Paulo: Cosak Naify, 2011.
SENDAK,
Maurice. Onde vivem os monstros. São
Paulo: Cosak Naify, 2009.
Ver também:
http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=422
Trailer Onde vivem os monstros:
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