segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Entrevista Luís de Camargo

O grupo de trabalho que ficou responsável por estudar e discutir sobre "A mediação da Leitura Literária" fez uma entrevista com Luís Camargo. Postamos agora as opiniões de alguém que tem muito a contribuir para o campo da Literatura Infantil:

Para você, o que é formar um leitor literário?
Para mim, a formação (ou educação) é um processo sempre inconcluso. Ocorre ao longo da vida. O papel de leitor está sempre em desenvolvimento, a cada texto lido, a cada conversa, a cada reflexão. Se é possível falar em formação de leitores, acho difícil definir o que seja um leitor formado. Podemos identificar um ponto de partida, um centro, mas não a circunferência.

Como deveria acontecer essa formação?
Contribuir para a formação do leitor literário significa contribuir para três coisas: o acesso, a compreensão e a apreciação das obras. Para isso é necessário contribuir para o acesso, compreensão e fruição de diferentes gêneros literários. O mediador de leitura precisa ficar atento para acessar, compreender e apreciar diferentes gêneros, inclusive aqueles que estão pouco presentes na escola. Os estudos literários vêm dando atenção, por exemplo, para cartas, diários, memórias, livros de viagem etc. Para o mediador de leitura não basta somente ler, é preciso ter alguma noção de teoria literária, de história da literatura, teorias e medotologias de leitura e mediação etc.

Quais os tipos de leitura o leitor literário precisa ter acesso na sua formação?
Os gêneros são possibilidades. Não acredito em listas fechadas do que deve ser lido, sejam obras, autores ou gêneros. Na medida do possível, o mediador de leitura precisa ter algum conhecimento sobre o gênero que pretende trabalhar. A fábula, por exemplo, é um gênero muito presente, mas sobre o qual se conhece muito pouco. Não se leva em conta que há fábulas em prosa e em verso. Que esse é um gênero de longa tradição escrita, desde pelo menos o século III a.C. (ao contrário do conto popular, que começa a ser registrado por escrito a partir do século XVII na França e no século XIX na Alemanha, na Inglaterra, no Brasil, na Rússia etc.) Acredita-se também que a fábula tem como protagonistas apenas animais, ignorando-se fábulas sobre árvores, flores, vento, pessoas, deuses etc. Outro falso conhecimento sobre a fábula é acreditar que toda fábula precisa ter uma lição de moral no final, destacada do texto principal. Ora, há fábulas que começam pela moral, outras em que a moral é enunciada por um personagem, outras que não têm moral explícita. Hoje em dia, um dos maiores problemas do estudo da literatura a partir dos gêneros é que muitas vezes se parte de definições simplistas que não levam em conta a varidadade dentro de um mesmo gênero ao longo do tempo.

O que você considera relevante para que o leditor literário continue a construir práticas de leitura ao longo de toda a sua vida?
Cabe ao mediador de leitura contribuir para o acesso, a compreensão e a fruição. Depois, o que cada um vai fazer com essas vivênvias, fica por conta de cada um. A mediação é um processo de abrir portas, não de colocar nos trilhos. O que quero dizer com isso é que não se deve ter um modelo fechado de “leitor formado”, por exemplo, “aquele que lê espontaneamente A Divina Comédia, compreende e aprecia.” O exemplo parece absurdo, mas muitos agem como se todos devessem apreciar determinados escritores e reconhecer outros como descartáveis que não merecem ser lidos.

Qual o papel da família nesse processo? E as famílias de baixa renda, que não têm acesso a esses bens culturais?
As pesquisas indicam que a família, especialmente a mãe, tem grande papel na formação de leitores. No caso de famílias que contribuem pouco para essa formação, cabe à escola assumir esse papel de mediadora. A escola, pode, inclusive, incentivar a família a participar na história de leitura de seus filhos. Conheço experiências em escolas públicas em que a resposta dos pais e outros familiares foi muito positiva.

E o papel da escola? Como o professor deve mediar a leitura?
A educação é um processo de transmissão, recepção e recriação de cultura que ocorre em toda a sociedade, ao longo de toda a vida. O ensino é uma ação planejada de educação. Implica em metas, alvos, objetivos; implica em planejamento; implica em avaliação.
O que caracteriza a mediação literária na escola é o planejamento, a avaliação, o objetivo, bem como a articulação entre um ou mais modelos teóricos de literatura, de leitura e de mediação, certas metodologias e as práticas do dia a dia. Os modos de fazer são inúmeros. Mas não se pode abrir mão da coerência entre teoria, metodologia e práticas, além dos objetivos, planejamento e avaliação. No meu entender, há dois objetivos básicos: desenvolver a compreensão e a apreciação. Essas seriam as duas asas da mediação literária.  

Qual formação o professor deveria receber para realizar a mediação da leitura e a formação do leitor literário?
Acredita-se que é preciso investir na formação de professores leitores porque se o professor não for leitor, não poderá contagiar seus alunos. Aí se esbarra na questão de definir o que é ser um leitor formado. Um bom mediador de leitura não pode ser leitor apenas dos mesmos textos que seus alunos. O mediador de literatura infantil precisa colocar no seu horizonte ir além da literatura infantil. Por outro lado, esse mesmo professor, mesmo sem um repertório muito grande, pode fazer um bom trabalho com seus alunos, se tiver orientação. “Formar um leitor” demora muito tempo. Não podemos nos dar ao luxo de primeiro formar o professor leitor para que depois ele “forme” seus alunos. É preciso transformá-lo num bom mediador de leitura, dentro de suas possibilidades, mesmo que seu repertório de leituras não seja muito amplo.
As universidades que formam os professores têm se mostrado pouco eficientes na formação desses professores com respeito à medicação literária. Isso começa pela ausência da disciplina literatura infantil e juvenil na grade curricular. Outro complicador é a atual abordagem dos textos por gênero textual colocando numa mesma cesta, por exemplo, rótulos, receitas, quadrinhas e contos de fada. Não dá para “mediar” um conto de fadas do mesmo modo do que uma “carta de reclamação”. Enquanto a disciplina literatura infantil e juvenil não integrar o currículo mínimo de formação dos professores, isso precisará ser suprido por formações em serviço, cursos de atualização e, sobretudo, o acompanhamento por mediadores de leitura experientes. Cursos, palestras e oficinas sem acompanhamento não adiantam. Cada um entende segundo o seu conhecimento prévio. Não é incomum que novas ideias sejam “adaptadas” pelo professor aquilo que ele já sabe e faz. Assim, o professor continua agindo da mesma maneira que sempre fez, mas utilizando termos da “moda”. Por isso, só o monitoramento – semanal, quinzenal ou mensal – pode corrigir essas distorções.
Não é simples formar um mediador de leitura. Isso envolve uma bagagem de leitura literária, de leitura teórica, de leitura de metodologias e práticas pedagógicas e ainda discutir a sua prática, levando-o a avançar na compreensão e apreciação das obras, além de capacitá-lo para avaliar seus alunos. (Ação pedagógica sem avaliação é agitação pedagógica... E não há avaliação sem metas, alvos, objetivos.) Por isso proponho assessorar o professor em suas atividades diárias, com uma “formação” paralela.

Para você, por que a formação do leitor literário é importante? Por que a leitura literária é importante para o sujeito social?
O ser humano é um animal curioso, que quer conhecer mais, um animal que quer intensificar seus sentimentos, um animal que imagina, que visa ir além do que é, ou seja, transcender-se. O que é cor e forma e canto e voo nos pássaros, no ser humano é voz, é canto, é dança, é poesia, é pintura, arquitetura etc. A arte é uma dimensão essencial do ser humano. Por falta de acesso e de mediação, muitos ficam à margem dessa dimensão. Sobrevivem sem se dar conta de sua deficiência, acostumados a produtos pseudo-artísticos. No caso específico da literatura, a arte da palavra, não se trata de um conjunto de textos bem escritos ou “belos”, mas de modos de pensar, sentir, perceber e imaginar. A literatura carrega a experiência humana pelo viés do humano. A literatura amplia nosso modo de nos vermos, de vermos a vida, o mundo, de estabelecermos objetivos para nossa vida. Nos leva a questionar decisões, preconceitos, visões simplistas sobre as pessoas, os povos. Mas a literatura frequentemente desequilibra – por isso não se confunde com as receitas prontas das frases atribuídas a grandes escritores que circulam na internet.
          



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