Para você, o que é formar um
leitor literário?
Para
mim, a formação (ou educação) é um processo sempre inconcluso. Ocorre ao longo
da vida. O papel de leitor está sempre em desenvolvimento, a cada texto lido, a
cada conversa, a cada reflexão. Se é possível falar em formação de leitores,
acho difícil definir o que seja um leitor formado. Podemos identificar um ponto
de partida, um centro, mas não a circunferência.
Como deveria acontecer essa
formação?
Contribuir
para a formação do leitor literário significa contribuir para três coisas: o
acesso, a compreensão e a apreciação das obras. Para isso é necessário
contribuir para o acesso, compreensão e fruição de diferentes gêneros
literários. O mediador de leitura precisa ficar atento para acessar, compreender
e apreciar diferentes gêneros, inclusive aqueles que estão pouco presentes na
escola. Os estudos literários vêm dando atenção, por exemplo, para cartas,
diários, memórias, livros de viagem etc. Para o mediador de leitura não basta
somente ler, é preciso ter alguma noção de teoria literária, de história da
literatura, teorias e medotologias de leitura e mediação etc.
Quais os tipos de leitura o
leitor literário precisa ter acesso na sua formação?
Os
gêneros são possibilidades. Não acredito em listas fechadas do que deve ser
lido, sejam obras, autores ou gêneros. Na medida do possível, o mediador de
leitura precisa ter algum conhecimento sobre o gênero que pretende trabalhar. A
fábula, por exemplo, é um gênero muito presente, mas sobre o qual se conhece
muito pouco. Não se leva em conta que há fábulas em prosa e em verso. Que esse
é um gênero de longa tradição escrita, desde pelo menos o século III a.C. (ao
contrário do conto popular, que começa a ser registrado por escrito a partir do
século XVII na França e no século XIX na Alemanha, na Inglaterra, no Brasil, na
Rússia etc.) Acredita-se também que a fábula tem como protagonistas apenas
animais, ignorando-se fábulas sobre árvores, flores, vento, pessoas, deuses
etc. Outro falso conhecimento sobre a fábula é acreditar que toda fábula
precisa ter uma lição de moral no final, destacada do texto principal. Ora, há
fábulas que começam pela moral, outras em que a moral é enunciada por um
personagem, outras que não têm moral explícita. Hoje em dia, um dos maiores
problemas do estudo da literatura a partir dos gêneros é que muitas vezes se
parte de definições simplistas que não levam em conta a varidadade dentro de um
mesmo gênero ao longo do tempo.
O que você considera
relevante para que o leditor literário continue a construir práticas de leitura
ao longo de toda a sua vida?
Cabe
ao mediador de leitura contribuir para o acesso, a compreensão e a fruição.
Depois, o que cada um vai fazer com essas vivênvias, fica por conta de cada um.
A mediação é um processo de abrir portas, não de colocar nos trilhos. O que
quero dizer com isso é que não se deve ter um modelo fechado de “leitor
formado”, por exemplo, “aquele que lê espontaneamente A Divina Comédia, compreende e aprecia.” O exemplo parece absurdo,
mas muitos agem como se todos devessem apreciar determinados escritores e
reconhecer outros como descartáveis que não merecem ser lidos.
Qual o papel da família
nesse processo? E as famílias de baixa renda, que não têm acesso a esses bens
culturais?
As
pesquisas indicam que a família, especialmente a mãe, tem grande papel na
formação de leitores. No caso de famílias que contribuem pouco para essa
formação, cabe à escola assumir esse papel de mediadora. A escola, pode,
inclusive, incentivar a família a participar na história de leitura de seus
filhos. Conheço experiências em escolas públicas em que a resposta dos pais e
outros familiares foi muito positiva.
E o papel da escola? Como o
professor deve mediar a leitura?
A
educação é um processo de transmissão, recepção e recriação de cultura que
ocorre em toda a sociedade, ao longo de toda a vida. O ensino é uma ação
planejada de educação. Implica em metas, alvos, objetivos; implica em
planejamento; implica em avaliação.
O
que caracteriza a mediação literária na escola é o planejamento, a avaliação, o
objetivo, bem como a articulação entre um ou mais modelos teóricos de
literatura, de leitura e de mediação, certas metodologias e as práticas do dia
a dia. Os modos de fazer são inúmeros. Mas não se pode abrir mão da coerência
entre teoria, metodologia e práticas, além dos objetivos, planejamento e
avaliação. No meu entender, há dois objetivos básicos: desenvolver a
compreensão e a apreciação. Essas seriam as duas asas da mediação literária.
Qual formação o professor
deveria receber para realizar a mediação da leitura e a formação do leitor
literário?
Acredita-se
que é preciso investir na formação de professores leitores porque se o
professor não for leitor, não poderá contagiar seus alunos. Aí se esbarra na
questão de definir o que é ser um leitor formado. Um bom mediador de leitura
não pode ser leitor apenas dos mesmos textos que seus alunos. O mediador de
literatura infantil precisa colocar no seu horizonte ir além da literatura
infantil. Por outro lado, esse mesmo professor, mesmo sem um repertório muito
grande, pode fazer um bom trabalho com seus alunos, se tiver orientação.
“Formar um leitor” demora muito tempo. Não podemos nos dar ao luxo de primeiro
formar o professor leitor para que depois ele “forme” seus alunos. É preciso
transformá-lo num bom mediador de leitura, dentro de suas possibilidades, mesmo
que seu repertório de leituras não seja muito amplo.
As
universidades que formam os professores têm se mostrado pouco eficientes na
formação desses professores com respeito à medicação literária. Isso começa
pela ausência da disciplina literatura infantil e juvenil na grade curricular.
Outro complicador é a atual abordagem dos textos por gênero textual colocando
numa mesma cesta, por exemplo, rótulos, receitas, quadrinhas e contos de fada.
Não dá para “mediar” um conto de fadas do mesmo modo do que uma “carta de
reclamação”. Enquanto a disciplina literatura infantil e juvenil não integrar o
currículo mínimo de formação dos professores, isso precisará ser suprido por
formações em serviço, cursos de atualização e, sobretudo, o acompanhamento por
mediadores de leitura experientes. Cursos, palestras e oficinas sem
acompanhamento não adiantam. Cada um entende segundo o seu conhecimento prévio.
Não é incomum que novas ideias sejam “adaptadas” pelo professor aquilo que ele
já sabe e faz. Assim, o professor continua agindo da mesma maneira que sempre
fez, mas utilizando termos da “moda”. Por isso, só o monitoramento – semanal,
quinzenal ou mensal – pode corrigir essas distorções.
Não
é simples formar um mediador de leitura. Isso envolve uma bagagem de leitura
literária, de leitura teórica, de leitura de metodologias e práticas
pedagógicas e ainda discutir a sua prática, levando-o a avançar na compreensão
e apreciação das obras, além de capacitá-lo para avaliar seus alunos. (Ação
pedagógica sem avaliação é agitação pedagógica... E não há avaliação sem metas,
alvos, objetivos.) Por isso proponho assessorar o professor em suas atividades
diárias, com uma “formação” paralela.
Para você, por que a
formação do leitor literário é importante? Por que a leitura literária é
importante para o sujeito social?
O
ser humano é um animal curioso, que quer conhecer mais, um animal que quer
intensificar seus sentimentos, um animal que imagina, que visa ir além do que
é, ou seja, transcender-se. O que é cor e forma e canto e voo nos pássaros, no
ser humano é voz, é canto, é dança, é poesia, é pintura, arquitetura etc. A
arte é uma dimensão essencial do ser humano. Por falta de acesso e de mediação,
muitos ficam à margem dessa dimensão. Sobrevivem sem se dar conta de sua
deficiência, acostumados a produtos pseudo-artísticos. No caso específico da
literatura, a arte da palavra, não se trata de um conjunto de textos bem
escritos ou “belos”, mas de modos de pensar, sentir, perceber e imaginar. A
literatura carrega a experiência humana pelo viés do humano. A literatura
amplia nosso modo de nos vermos, de vermos a vida, o mundo, de estabelecermos
objetivos para nossa vida. Nos leva a questionar decisões, preconceitos, visões
simplistas sobre as pessoas, os povos. Mas a literatura frequentemente desequilibra
– por isso não se confunde com as receitas prontas das frases atribuídas a
grandes escritores que circulam na internet.